Narrativas sombrias I 

28/08/2022

A cabeça da moreia



Passava das vinte e três horas quando Isadora fechou as majestosas portas da Mansão Drummond. As estranhas visitas da sua patroa, Madame Vick, haviam finalmente deixado a residência, a bordo de uma limusine preta azulada.

Já se tornara um hábito a madame receber aquela gente esquisita que aparecia sempre vestida de preto nas tardes de sextas-feiras. Dia em que a patroa dava folga aos outros empregados: a governanta, duas serviçais e o motorista, passando horas em conluio com seus misteriosos visitantes.

Algumas vezes, Isadora tentara ouvir o que conversavam sempre à meia-voz, mas por duas ou três ocasiões, quando se aproximara do quarto de Vick, fora assaltada por sinistros calafrios e desistira do intento. As três figuras trajavam negro: uma velha senhora obesa portando, quase sempre, um chapéu rendado no mínimo ridículo, uma garota ruiva de rosto tomado por sardas e um senhor alto e exageradamente magro; pareciam não tomar conhecimento da sua presença. A garota, às vezes, a fitava com o olhar zombeteiro e provocador. Nessas horas, a vontade de Isadora era de agarrar-lhe as duas tranças avermelhadas e, num forte puxão, fazer a pestinha gritar.

Respirou fundo enquanto apagava as luzes da sala, não valia a pena pensar naquela gente. Que o cão dos infernos as arrebatasse para longe! Benzeu-se ligeiramente, como a se redimir do mau pensamento. No momento certo, eles e a própria madame iriam se arrepender pelo modo que a tratavam.

Pensou em Osmar, o filho de Vick. Estiveram juntos dois dias antes que ele viajasse a Londres e trocassem juras de amor. É claro que ela cedera diante das investidas do belo herdeiro dos Drummond, entregando o seu corpo jovem e sedutor, não sem antes obter dele a promessa de assumi-la como sua namorada quando regressasse da Europa.

Sentira desde o início o interesse do jovem por ela e, quem sabe agora, depois daquela calorosa noite de amor, o destino não a contemplasse com um herdeiro dos Drummond.

Encontrava-se entregue aos seus pensamentos quando o badalar do pequeno sino de ouro de Vick a alertara sobre suas obrigações. Seguiu apressada.

- Onde esteve, menina? Por que me aparece sem meu chá? - A velha senhora já se encontrava deitada e preparada para dormir. Certamente a mulher de preto a havia ajudado a se trocar. Melhor assim, detestava auxiliar aquela velha em suas intimidades. - Vamos Isadora. Não fique parada a me olhar com a cara de palerma. Mexa-se.

- Perdoe-me, senhora, eu já estou indo. - As palavras da patroa fizeram o sangue de Isadora esquentar. Sentia o rosto em brasa quando desceu apressada em direção à cozinha. Ao passar pelo longo corredor, observou, enojada, os aquários de vidro que acompanhavam a extensão da parede. Neles, a madame criava sinistras moreias negras.

Após servir o chá e dizer "boa noite", ao qual a senhora como sempre não se dignara a responder, Isadora pôde, enfim, seguir para seu quarto, que estrategicamente ficava próximo ao da anciã. Vick acordava-se muitas vezes durante a madrugada e sininho cantava nos ouvidos de Isadora. A empregada despertava com um humor insuportável. Parecia que a velha se deliciava em importuná-la! Nessas ocasiões, a sua vontade era sufocá-la com seus travesseiros de penas de ganso e algodão egípcio.

De madrugada, por volta das três horas, horário que segundo dizem, os coisas-ruins costumam vagar, a jovem acordara ouvindo vozes estranhas provenientes do quarto da patroa.

Vestindo um penhoar e andando nas pontas dos pés, encostou-se rente à porta para ouvir o que se passava. Um calafrio percorreu seu corpo quando ouviu a voz da velha recitando uma estranha prece, em que nomes sinistros eram evocados e, ao final de cada frase, ela identificara pasma o seu nome ser pronunciado.

Cautelosamente, foi abrindo a porta lentamente e o que viu a fez gelar.

Madame Vick estava ajoelhada sobre um tapete e à sua frente, um candelabro com velas negras iluminava a estátua de um ser grotesco e aterrador. Um demônio com cabeça de bode e chifres retorcidos. Próximo dele, numa bacia de ferro com água, uma coisa escura se retorcia. Isadora percebeu ser uma moreia!

A anciã, concentrada, repetia aquele estranho mantra, cujas palavras eram incompreensíveis, mas a sonoridade causava-lhe arrepios. Pasma, ouviu mais uma vez seu nome ser repetido.

Antes que dissesse ou fizesse algo, da fresta onde se posicionara, Isadora observou quando Vick, retirando o animal da água, decepou com um golpe brusco da machadinha, a cabeça da criatura. Um grito fino se ouviu seguido de uma lufada de vento oriunda não se sabe de onde, a qual ameaçara apagar as chamas das velas.

Mesmo com os cabelos em pé, a jovem não controlou o ímpeto de tirar as devidas satisfações com a anciã:

- Madame, em nome de Deus, o que está fazendo?

- Isadora? O que faz aqui, insolente, se eu não a chamei? Por acaso ouviu o sino do capeta lhe chamando?

- Não sei o que a senhora estava fazendo, se é macumba ou feitiçaria, mas ouvi nitidamente quando disse o meu nome!

- Ah! Desde quando lhe devo satisfação? Cale a boca e volte para seu quarto.

- Não irei sem a senhora me explicar o que estava fazendo.

- Vadia atrevida! Você só tem me trazido dissabores. Por acaso não imagina que venho acompanhando seus passos?

- Eu não sei do que a senhora está falando e exijo que me respeite.

- Calada! Ainda não terminei! Sei que tem crescido os olhos para cima do meu filho... você não se enxerga, menina? Pensa que permitirei que Osmar se enrabiche por alguém como você?

- O quê? - Embora indignada, Isadora sentiu-se satisfeita. A irritação da velha denunciava que Osmar estaria mesmo interessado por ela e, como prometera, se rebelado frente à sua sufocante autoridade.

- Não tente negar. Meu leal motorista já havia me alertado sobre você e agora essa carta de Osmar... - A senhora calou-se ao perceber que falara demais. Os olhos de Isadora já localizavam a missiva próxima ao ídolo de ferro.

- Carta de Osmar? De meu Osmar? Deixe-me lê-la.

- Não, não ouse se aproximar, marafona!

- O quê? Já aguentei demais os seus desmandos, bruxa velha, agora chega! Partiu para a anciã, se engalfinhando com ela e rolando sobre a cama. Vick cravou as unhas nos braços de Isadora, tirando dela um gemido profundo. Isadora fora pega de surpresa com a ferocidade da anciã, que tentava a todo custo mordê-la. No entanto, a força da jovem naturalmente sobrepujou a da idosa e Isadora, num rompante descontrolado, desferiu dois socos no rosto da madame, derrubando-a de costas. A anciã caiu torta, batendo violentamente a cabeça no piso de lajotas.

- Deus, será que a matei? - Tomou-lhe então o pulso, preocupada:

- Não! Ainda vive, mas não durará muito. - Sangue escorria do nariz de Vick, poderia estar com uma hemorragia interna. - Agora, vejamos o que há na carta... Oh!

Para o desgosto de Isadora, misteriosamente duas velas negras do candelabro haviam caído sobre a carta e desta só restavam cinzas misturadas ao borrão de cera.

- Não faz mal. Preciso ser rápida. Não posso estar aqui quando descobrirem essa velha morta.

Sem perder tempo, Isadora correu aos porta-joias da madame e encheu a bolsa.

- Preciso garantir o meu futuro, caso Osmar não mantenha a sua palavra.

Quando seguia pelo corredor, sentiu algo liso e pegajoso tocar-lhe as pernas. Um calafrio percorreu o seu corpo seguido de uma dor lancinante. Olhou para baixo e um grito de terror escapou-lhe dos lábios. Na sua perna, grudada, qual beijo mortífero, a cabeça da moreia.

Apavorada, arrancou aquela coisa nojenta e asquerosa de sua perna e correu. A cabeça, inexplicavelmente viva, seguia em seu encalço, rastejando pelo piso de mármore. Desesperada, conseguiu fechar a porta do corredor para ganhar tempo, mas aquela coisa repugnante roía a madeira num barulho ensurdecedor. Correu para a cozinha. As moreias enlouquecidas começaram a quebrar os aquários.

Aos gritos, Isadora subiu as escadarias procurando o refúgio do seu quarto. As moreias seguiam-na com as bocas escancaradas, ávidas por seu sangue.

Entrou no quarto fechando a porta. "Aquilo não podia estar acontecendo, não podia".

Tudo estava escuro. Os guinchos dos animais deixavam-na apavorada e confusa. Tateando em busca do interruptor de luz, sentiu-se esbarrar em algo. Ao acender a lâmpada, constatou estar no quarto da madame e não no seu. Vick continuava caída em frente ao ídolo macabro e parecia morta. Trancou a porta ao ouvir o rastejar dos bichos no corredor. Estava momentaneamente salva.

Para seu horror, sentiu algo gélido cair-lhe sobre o peito. Era a cabeça da moreia rasgando vorazmente seus seios. Gritou. A agonia tomava conta de seu ser e o sangue empapava sua blusa.

Num esforço sobre-humano, empurrou aquela coisa asquerosa e fria para longe, quando horrorizada, ouviu a voz rouca de Vick:

"Vadia!"

No entanto, ela não provinha do corpo inerte, mas da cabeça da moreia rastejando em sua direção.

Quase louca, procurou pela machadinha que estava próxima do corpo da anciã. As moreias começavam a penetrar no quarto por um buraco, por elas cavado, na porta. Sentiu os animais ensandecidos subirem quais víboras peçonhentas por suas pernas, enquanto a cabeça da moreia, às gargalhadas, acompanhava seu desespero.

Ensandecida e aos gritos, e com a machadinha em riste acertava quantas alcançava cortando-as ao meio, mas as partes continuavam vivas se arrastando em sua direção. A quantidade de seres rastejantes havia triplicado. Elas subiam por seu corpo, quais vermes esfaimados rasgando sua pele macia com dentes serrilhados. Cega de dor e alucinada pela dantesca situação, tropeçou no corpo da velha, perdendo o equilíbrio. Todavia, antes de cair e ser dominada pelas criaturas, agarrou o pescoço da mulher e disse:

- Vais comigo pro inferno, velha maldita!

Com três golpes certeiros, decepou a cabeça da anciã. Um grito agonizante se ouviu escapar da cabeça da moreia. Um grito de Vick!

O pesadelo terminou. As moreias sumiram no corredor. As cabeças, tanto a da velha, como a da moreia, jaziam mergulhadas em uma poça escura de sangue.

Isadora ergueu-se e seguiu em direção ao seu quarto. Sua aparência era aterradora. A boca trêmula, os cabelos desgrenhados. Seguia na ponta dos pés, parecendo pisar em ovos. Os olhos ensandecidos corriam de um lado para outro, sondando a possibilidade de um novo ataque.

Procurando o telefone, discou. Duas, três, quatro vezes. Até que, do outro lado da linha, alguém atendeu e ela pôde contar tudo o que acontecera. A voz pedia que ela se acalmasse e permanecesse onde estava, que o socorro logo estaria chegando.

Isadora ficou sentada num canto do quarto, segurando a machadinha ensanguentada. Aliviada e enlouquecida, aguardaria a chegada da polícia. Sabia que iriam acreditar em sua história e principalmente em sua inocência. Pensou em Osmar. Onde ele estaria? Por que se demorava tanto? Ele não a amava e eles não iriam se casar? Passou a mão agitada sobre a fronte, afastando o cabelo colado de suor. Ouviu o barulho de motor, seria o carro de Osmar? Certamente seria ele, seu amado Osmar, concluiu para si mesma, satisfeita. Osmar a defenderia e eles iriam se casar. Ele entenderia que a culpada de tudo o que acontecera não havia sido ela, mas a maldita cabeça da moreia.


Fim


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